Glenn Gould (1932-1982) - O Escritor (parte II)
Música Clássica

Glenn Gould (1932-1982) - O Escritor (parte II)


Glenn Gould entrevista Glenn Gould sobre Glenn Gould - High Fidelity, Fevereiro 1974.
(Segunda Parte)

A primeira parte está aqui. Nesta cor e a itálico estão alguns comentários explicativos ou outras observações sobre o que Gould afirma. Notem que neste artigo o entrevistador é próprio Gould ...

g.g.: Mr Gould tenho a certeza que esse tipo de troca de papeis é satisfatório do ponto de vista retórico e pode mesmo acontecer que o conceito de audiência criativa a que dedicou considerável espaço em outras entrevistas oferece uma espécie de fascinação "McLuchanesca". Esquece porém que o Artista, mesmo que hermético no seu estilo de vida continua a ser uma figura autocrática. É, mesmo que benevolente, um ditador social e o seu público mesmo que generosamente gratificados com gadgets, mesmo que enriquecidos de opções electrónicas continuam sempre do lado da recepção da mensagem, pelo menos até hoje, e toda o seu anonimato neo-medieval na demanda do artista enquanto "zero" e todo o seu pan-culturalismo vertical em nome do seu público não vai mudar isso - ou pelo menos não o fez até agora.

McLuhan (1911-1980) foi um filósofo Canadiense que teórico da teoria da comunicação e que introduziu temas como "o meio é a mensagem" do livro "Understanding Media: The Extensions of Man" , "aldeia global" por exemplo. O seu outro livro "O meio é massagem" uma óbvia brincadeira com anterior trabalho é um livro extraordinariamente original feito de frases desconexas, imagens, textos invertidos em que alguns vêm uma ante visão da Internet. Não tenho a certeza que daria esse passo de fé. Agora que esta entrevista de Gould a Gould é extraordinária também neste simples aspecto não resta a mínima dúvida.

G.G.: Posso falar agora?

g.g.: Claro. Desculpe não me queria deixar levar mas tenho opiniões muito fortes acerca de --

G.G.: Do artista enquanto super-homem?

g.g.: Isso não é justo Sr. Gould.

G.G.: Ou acerca do interlocutor como controlador de conversações, talvez?

g.g.: Não há necessidade de ser mal educado. Não estava à espera de conseguir respostas conciliadoras da sua parte. Sei que tem determinadas posições filosóficas relativas a estes tópicos - mas tinha pelo menos esperado que fosse possível que pelo menos uma vez confessasse uma experiência um-para-um, artista para ouvinte. Tinha esperado que confessasse ter pelo menos uma vez sido testemunha da atracção magnética que um grande artista exerce perante o seu público.

G.G.: Oh, mas eu tive essa experiência.

g.g.: Verdade?

G.G.: Claro e não me incomoda nada confessá-lo. Há muitos anos estava em Berlim quando Herbert von Karajan dirigiu a Filarmónica de Berlim na sua primeira performance da Quinta Sinfonia de Sibelius. Como sabe Karajan tende - especialmente no reportório romântico tardio - a conduzir com os olhos fechados e manejar a sua batuta com enorme amplitude coreográfica e o efeito muito sinceramente, contribuiu para uma das experiências musicais e dramáticas verdadeiramente inesquecíveis da minha vida.

Karajan gravou por quatro vezes a Quinta Sinfonia de Sibelius da qual é considerado um especialista. Uma primeira vez em 1952 com a Philarmonia ainda em mono depois em 1960 novamente com a Philarmonia e em 1965 com a Sinfónica de Berlim para a DG. É a esta gravação que Gould alude. Curiosamente apesar de personalidades profundamente diferentes os dois deram-se muito bem existindo mesmo algumas gravações extraordinárias de que vos falaremos a seu tempo.

g.g.: Está a defender a minha ideia muito bem, Mr. Gould. Eu sei,claro, que essa interpretação, ou aliás qualquer uma das subsequentes incarnações desempenhou um papel importante na sua vida.

G.G.: Está a dizer isso porque a utilizei no epílogo do meu documentário de rádio "A Ideia do Norte"?

Estes programas radiofónicos são o conceito introduzido por Gould de "radio em contraponto" de que falamos aqui.

g.g.: Exactamente, e acabou de admitir que essa experiência inesquecível derivou de um encontro face-a-face, partilhado com a audiência e não apenas partindo da experiência impessoal proveniente de uma gravação - mesmo que excelente.

G.G.: Bem suponho que possa dizer isso porém eu não era exactamente um membro da audiência.. Na realidade estava numa cabine de gravação em vidro colocada por cima do palco e embora eu estivesse numa posição em que podia ver a cara de Karajan e relacionar cada expressão facil com a música emergente o restante da audiência excepto no que diz respeito a um perfil de vez em quando não o podia fazer.

g.g.: Receio que estejamos aqui a subdividir ritmos, Mr Gould.

G.G.: Não tenho tanta certeza disso. Repare o estudio de gravação na verdade representava um estado de isolamento, não apenas meu em relação ao resto da audiência mas também em relação à Filarmónica de Berlim e ao seu maestro.

g.g.: E agora está apenas a esgrimir argumentos simbólicos.

G.G.: Talvez mas devo salientar - entre nós claro - que quando incorporei a Quinta de Sibelius dirigida por Karajan no meu documentário revi a dinâmica da gravação para que esta se enquadrasse no espírito do texto e essa liberdade é seguramente o produto de - Como posso chamar-lhe ? - A entusiástica irreverência da relação zero-para-um, não diria ?

g.g: Diria antes que é o produto de raiva incontrolável. Claro que percebo que a ideia de "Ideia do Norte" era ser uma emissão experimental de rádio em que - recordo - tratava a voz humana como alguém faria a um instrumento musical.

G.G.: Certo.

g.g.: ... e permitia que dois, três ou quatro individuos falassem ao mesmo tempo.

G.G.: É verdade.

g.g.: Mas enquanto as suas experiências apenas afectavam o seu material em bruto por assim dizer parecem-me perfeitamente legitimas , a sua utilização, ou melhor o seu abuso do material de von Karajan é um assunto completamente diferente. Afinal de contas acabou de dizer que a sua experiência foi "inesquecível". E no entanto confessa que alterou esse material para encaixar naquilo que eram presumivelmente dinamicas cuidadosamente planeadas.

G.G.: Fizemos também alguma equalização ...

g.g.: E tudo no interesse de --

G.G.: Das minhas necessidade do momento.

gg.: Que no entanto eram pelo menos únicas para o projecto que tinha em mãos.

G.G.: Sim concedo-lhe isso. Mas cada ouvinte tem um "projecto em mãos", simplesmente nos termos de fazer a sua experiência de vida relacionar-se com a música que está a ouvir.

g.g: E está preparado para ouvir semelhantes modificações não autorizadas praticadas na sua própria arte por um ouvinte ouvintes desconhecidos?

G.G.: Teria falhado se assim não fosse.

g.g.: Nesse caso está definitivamente consciente de que não existe qualquer padrão estético que permita medir ou relacionar as suas gravações "originais" com a forma como são posteriormente ouvidas ?

G.G.: Por falar nisso não faço qualquer ideia do mérito estético da Quinta de Sibelius quando dirigida por Karajan quando a ouvi naquela ocasião memorável. De facto a beleza da ocasião era que embora estivesse consciente de que estava a ser testemunha de uma experiência intensa e emocionante, não fazia ideia se era uma "boa" interpretação. Os meus julgamentos estéticos estavam simplesmente guardados no frigorífico, que aliás acho que é onde devem ficar pelo menos quando avalio o trabalho de outros. Talvez necessariamente e por razões totalmente práticas eu o faça quando avalio o meu trabalho mas ...

g.g.: Mr Gould, está a dizer que não julgamentos de ordem estética ?

G.G.: Não, não estou a dizer isso - embora gostasse de o dizer porque isso significaria que tinha atingido um grau de perfeição espiritual que ainda não atingi. No entanto para refrasear o cliché, tento na medida do possível fazer apenas julgamentos morais e não estéticos - excepto como disse no caso dos meus próprios trabalhos.

g.g.: Suponho que tenha de lhe conceder o beneficio da dúvida ---

G.G.: É muito amável da sua parte.

g.g.: E assumir que está a avaliar as suas próprias motivações de forma responsável e exacta.

G.G.: Posso apenas tentar.

g.g.: ... e dado que o que acabou de confessar adiciona tantos caminhos possíveis para a nossa conversa que simplesmente não sei por qual continuar.

G.G.: Porque não tentar o mais óbvio e eu seguirei-o.

Fim da segunda parte

Primeira Parte Aqui



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