Música Clássica
A Paz pela Música (West-Estearn Divan Orchestra)
Não vou fazer neste post nem uma biografia nem um elogio dos homens em questão ou dos artistas ou académicos em causa. Este post toma partido sim senhor, toma partido pela paz. O essencial deste post reside na Paz e no papel que a música nela pode desempenhar.
Barenboim nasceu em Buenos Aires na Argentina em 1942, filho de judeus de origem Russa que tinham emigrado para fugir da perseguição que já eram alvo na Europa. Viveu até aos 10 de idade na Argentina - permanecendo cidadão desse país ao mesmo titulo que algumas das outras nacionalidade que foi adquirindo ao longo dos anos e que fazem dele um verdadeiro cidadão do mundo, um representante da Humanidade. O que vos conto neste post são sobretudo palavras dele e de Edward Said numa interpretação que espero ser fiel às suas ideias.
A história que vos quero contar começa em 1999 quando Barenboim cria com
Edward Saíd (1935-2003) um palestiniano a West-Estearn Divan Orchestra numa tentativa aproximar pela cultura duas civilizações aparentemente opostas por um conflito e ódios que nos parecem inultrapassáveis. O que vos vou escrever neste texto, talvez um pouco longo para a internet (mas desta vez ao contrário de outras ocasiões quis mesmo que ficasse num único post), baseia-se no livro de Daniel Barenboim "
Está tudo Ligado - O Poder da Música" em particular nos conteúdos do capítulo "A Orquestra" que aborda precisamente a criação da mesma, "Recordando Ernest Said" que nos relembra quem era este Palestiano, "Sessenta Anos de Israel" que faz uma análise da vivência e sobrevivência do estado Judaico e ainda um capitulo que contém uma tradução do discurso de aceitação do
Prémio Wolf de que já falamos neste blog por várias vezes. Obviamente se conseguirem encontrar o referido livro (uma edição da Bizâncio) este é sem dúvida uma excelente leitura para o Dia Mundial da Paz, o dia 1 de Janeiro.
Segundo Barenboim Edward Said dizia que a música era sempre um pouco subversiva porque tentando conciliar vozes dominantes com vozes secundárias mantendo-as nesta hierarquia mas sem que uma delas se oblitere tornando-se irrelevante ou simplesmente mecânica. Subversiva porque tentando conciliar melodia e acompanhamento sem que nenhum deles se substitua ao outro. Subversiva portanto porque demonstra que é possível conjugar tudo isto num conjunto harmonioso em que todos têm o seu lugar. Claro que na música ambas estas coisas são mais fáceis de fazer do que no mundo real. Na música puderam concluir-se em alguns meses acrescenta. No mundo real poderá demorar um pouco mais mas não um tempo infinito.
Para quem não saiba o próprio nome West-Eastern Diwan Orchestra é ele próprio significativo. Foi inspirado numa recolha de poemas de Goethe possivelmente um dos primeiros europeus a interessar-se verdadeiramente por outras culturas. Goethe apaixonou-se pelo Islão que conheceu através de um soldado alemão. Posteriormente ficou fascinado por um poeta de origem persa Hafiz. Diwan é um termo de origem árabe que significa lista ou colectânea. Goethe utilizou este termo (aliás utilizado também em França e no Al-Andaluz para o mesmo efeito - designar uma colectânea de poemas) para a sua obra ao estilo Persa. Curiosamente nessa mesma altura Beethoven escrevia a sua nona sinfonia e sonhava com "homens todos irmãos". Que lição poderíamos tirar deste final do século XVIII! Mas isso é outra história e este post já será demasiado longo sem o parêntesis - um dos muitos que me apetece fazer ao longo deste texto.
A Orquestra reuniu-se pela primeira vez em Weimar o que não deixa de ter também um significado simbólico profundo sendo essa cidade o berço cultural da Alemanha, berço de Goethe, Schiller, ... e ao mesmo tempo a escassa distância de Buchenwald onde Judeus eram levados para a camâras de gaz ao som de Wagner. O simbolismo aliás nunca abandonou esta orquestra que viria dois anos depois a obter uma residência definitiva na nossa vizinha Andaluzia o local onde Cristãos, Judeus e Islâmicos conseguiram viver em paz durante quase sete séculos fixando a sua sede em Sevilha a partir de 2002.
A intenção do estágio inicial em Weimar era apenas de conseguir fazer com que músicos israelitas e árabes "tocassem a mesma nota da mesma forma" chegando a um entendimento como o fazer, se isso acontecesse pensavam Said e Barenboim nunca mais poderiam pensar no conflito que os separa da mesma forma essencialmente porque para conseguir esse entendimento já teriam ultrapassado o primeiro passo: Ouvir com atenção o outro, mesmo que numa forma abstracta de arte - e por isso a música era tão atractiva como forma de encetar um diálogo - mas teriam ouvido. A natureza puramente abstracta mas ao mesmo tempo precisa era ideal para que fosse possível ouvir com atenção. Porque para fazer música numa orquestra não basta apenas tocar muito bem é preciso saber ouvir os demais. Os papeis podem ser apenas de suporte ou fazerem parte do acompanhamento ou ainda de uma linha melódica secundária mas todos têm um papel a desempenhar, todos fazem diferença.
Barenboim e Said sabiam que a Orquestra não poderia trazer a Paz mas achavam que dado o primeiro passo num entendimento musical e que esse entendimento pressupõe, exige mesmo, que se oiça (mas que se oiça verdadeiramente) então torna-se possível o passo seguinte o do entendimento verbal. Impossível? Quando eles iniciaram o projecto se alguém lhes dissesse que iriam um dia fazer tournées pelo mundo fora que iriam interpretar no mais improvável dos palcos numa Ramallah cercada pelos tanques israelitas não acreditariam, mas a verdade é que removida a "impossibilidade mental" o resto torna-se particularmente simples.
E fez-se o tal concerto histórico a todos os níveis em Ramallah (2004) e claro que em ambos os lados há quem não entenda. Há quem não entenda porque acredita que isso é uma cedência indesculpável a qualquer condição prévia que se estabeleceu, há quem não entenda porque acredita numa solução pela força e na inabalável justeza do seu ponto de vista ... Há quem não entenda porque simplesmente ainda não conseguiu ouvir verdadeiramente a outra face da história, tanto do lado dos opressores como do lado dos oprimidos.
Neste conflito como em outros não podemos falar em tolerância, tolerância tem implícito um conceito de superioridade - eu tolero porque te sou superior - perigoso e insultuoso mesmo. Dizia Edward Said : "Eu e o meu amigo Daniel Barenboim escolhemos a via Humanística e não politica porque acreditamos que a ignorância não é uma estratégia de sobrevivência sustentável".
Esta Orquestra já rompeu com centenas de obstáculos centenas de preconceitos. Já colocou músicos ocidentais judeus e cristãos em conjunto com músicos árabes a interpretar Mozart em Ramallah. Já colocou músicos judeus a interpretar Wagner (um tabu desde o holocausto pelas razões óbvias decorrentes do já citado e do famoso manifesto Wagneriano), mas fê-lo porque musicalmente Wagner é um compositor que tem na história da música um papel incontornável: Sem Wagner não haveria Bruckner, Strauss ou Mahler. Porque com a razão foi capaz de ultrapassar condições emocionais que são reais mas que não deixam de ser ultrapassáveis.
A realização do concerto em Ramallah necessitou a junção de um conjunto apreciável de recursos e de vontades. A questão que se pode colocar é porque razão conseguimos que elas se juntem durante um instante para depois desaparecerem como se nunca tivessem existido. Tal como em 2006 dois anos depois apesar da guerra existente entre Israel e o Hezbollah a orquestra reuniu-se e conseguiu mesmo entre os músicos chegar a um entendimento sobre uma nota a colocar nos programas que endereçava a situação de forma clara:
Este ano o nosso projecto está em contraste flagrante com a crueldade e selvajaria que recusa a tantos civis inocentes a possibilidade de continuarem a viver, a concretizar os seus ideais e sonhos. A destruição pelo governo Israelista de infra-estruturas vitais no Líbano e em Gaza desenraizando um milhão de pessoas e infligindo pesadas baixas à população civil e o bombardeamento indiscriminado pelo Hezbollah de civis no Norte de Israel estão em total oposição aquilo em que nós acreditamos. A recusa de um cessar-fogo imediato e a recusa de entrar em negociações para resolver de uma vez por todas o conflito em todos os seus aspectos vão contra aquela que é a essência do nosso projecto.No discurso de aceitação do prémio Wolf e em pleno Knesset disse Daniel Barenboim: "
Apesar do facto de, enquanto arte, a música não possa comprometer os seus princípios e a politica por outro lado ser a arte do compromisso, é também verdade que noutro ponto de vista quando a politica transcende os limites da existência presente e ascende à mais alta esfera do possível, pode aí ter a companhia da música. A música é a arte do imaginário por excelência, uma arte liberta dos limites impostos por palavras, uma arte que toca a profundidade da existência humana, uma arte que atravessa todas as fronteiras. Como tal a música pode levar os sentimentos dos Israelitas e Palestinianos a novas e inimagináveis esferas."
No próximo Verão a West-Eastern Orchestra vai estar de novo nos proms mas desta vez de forma especial para interpretar uma integral das sinfonias de Beethoven. Simbolicamente para representar o Espírito Olímpico. Dificilmente encontrariam melhor duplo simbolismo. Pela Paz.
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