Música Clássica
Glenn Gould (1932-1982) - O Escritor (parte III)
Esta é a terceira parte de um artigo que Glenn Gould escreveu para a revista High Fidelity em 1974. A entrevista que traduzo aqui a partir da versão original que podem encontrar aqui é do próprio Gould que desempenha o papel de entrevistado e entrevistador. A entrevista claro é também sobre o próprio Gould.
Além de nos explicar muito sobre a forma como este artista se encarava este artigo é também um verdadeiro statement sobre o que é a arte e a música além de demonstrar uma visão notável. As duas primeiras partes deste artigo estão aqui (primeira parte) e aqui (segunda parte).
Glenn Gould entrevista Glenn Gould sobre Glenn Gould
High Fidelity, Fevereiro 1974.
(Terceira Parte)g.g.: Então suponho que a questão óbvia é: Se não faz julgamentos estéticos em relação ao trabalho de outros então como encara julgamentos estéticos em relação ao seu trabalho?
G.G.: Oh, alguns dos meus melhores amigos são críticos, apesar de não ter a certeza que gostasse que o meu piano fosse tocado por um deles.
g.g.: Mas há alguns momentos definiu o termo "Perfeição espíritual" como um estado em que o julgamento estético é eliminado.
G.G.: Não queria ter dado a impressão que a única forma de chegar a esse estado fosse esse critério.
g.g.:Claro, percebo issso. Mas seria justo dizer que na sua opinião o espirito crítico leva fatalmente à exclusão de um estado de graça ?
G.G.: Bem, acho que isso seria muita presunção da minha parte. Como disse alguns dos meus melhores amigos são --
g.g.: -- são critícos, eu sei, mas está a fugir à questão.
G.G.: Não intencionalmente. Simplesmente penso que não se deve generalizar em assuntos em que reputações tão distintas estão em causa e --
g.g.: Mr Gould penso que nos deve, assim como aos nossos leitores uma resposta a esta questão
G.G.: Devo?
g.g.: É a minha convicção; talvez devesse repetir a questão.
G.G.: Não, não é necessário.
g.g.: Então acha realmente que o crítico represente uma espécie moralmente ameaçada?
G.G.: Bem a palavra ameaçada implica que --
g.g.: -- Por favor Mr. Gould, responda à pergunta - Acha isso não acha ?
G.G.: Bem, como disse, eu --
g.g.: Acha, não acha ?
G.G: [pausa] Sim.
g.g.: Com certeza que acha e agora também se sente melhor com esta confissão.
G.G.: Hmm, não neste momento
g.g.: Mas isso virá com o tempo.
G.G.: Acha mesmo ?
g.g.: Não tenho dúvida. Mas agora que colocou a sua posição de forma tão franca tenho de mencionar o facto que em tempos já fez criticas com expressão de valores estéticos. Lembro-me por exemplo de um artigo sobre Petula Clark que escreveu para esta coluna alguns anos atrás e que --
G.G: -- que continha mais julgamentos estéticos por centimetro quadrado de página que eu julgaria possível escrever hoje. Mas era essencialmente uma critica moral. Era uma peça em que utilizei a Miss Clark, por assim dizer, para comentar num determinado meio social.
g.g.: Acha portanto que consegue destinguir entre uma crítica estética do inviduo - que rejeita de forma liminar - e o estabelecimento de imperativos morais para sociedade como um todo.
G.G: Penso que consigo. claro que há áreas em que a sobreposição é inevitável. vamos por exemplo admitir que moro numa cidade em que todas as casas são cinzento de navio de guerra.
g.g.: Porquê essa côr ?
G.G.: É a minha cor preferida.
g.g: É uma cor bastante negativa não é ?
G.G.: É por isso que é a minha preferida. Vamos então supor - para bem da nossa discussão - que um individuo decidia sem dizer nada pintar a sua casa de vermelho quarte de bombeiro.
g.g: Mudando desta forma a simetria do planeamento urbano.
G.G.: Sim isso também, mas está a ver a questão do ponto de vista estético. As reais consequências desta acção seriam que este seria o prenúncio de actividade maníaca na cidade e quase inevitavelmente - dado que outras casas seriam pintadas inevitavelmente de outras cores - encorajariam um clima de competição e como corolário de violência.
g.g: Imagino então que esse vermelho no seu vocabulário represente o comportamento agressivo.
G.G.: Penso que há um consenso quanto a isso. Mas como disse haveria aqui uma sobreposição do estético com o moral. O homem que pintou a primeira casa de vermelho pode o ter feito por uma razão puramente estética e para utilizar uma velha palavra seria pecado responsabiliza-lo pela escolha da cor. Tal facto iria certamente cercear qualquer outro julgamento da sua parte. Mas se fossemos capazes de o convencer que a sua estética apresentava um perigo para a comunidade e desde que ele conseguisse ter um vocabulário adequado para a tarefa - que não seria obviamente uma de standards estéticos - então isso seria, creio da minha responsabilidade.
g.g: Tem a noção que esta a começar a falar como um personagem saído de George Orwell ?
G.G.: O mundo Orweliano não contém terrores especiais para mim.
Fim da terceira parte
Leia aqui a Quarta Parte.
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